
Como começar a construir uma cosmovisão (Visão de Mundo) cristã? A passagem fundamental é a narrativa da criação em Gênesis, porque é o ponto que devemos examinar a fim de aprender qual era o propósito original de Deus ao criar a raça humana. Com a entrada do pecado, os seres humanos saíram do trajeto, afastaram-se do caminho, perderam-se. Porém, quando aceita¬mos a salvação em Cristo, somos recolocados no caminho certo e restau¬rados ao nosso propósito original. A redenção não é somente ser salvo do pecado, mas também ser salvo para algo — retomar a tarefa para a qual fomos originalmente criados.
E qual era a tarefa? Em Gênesis, Deus dá o que chamaríamos de a primeira descrição de cargo: "Frutificai, e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a..." (Gn 1.28) A primeira frase - "Frutificai, e multiplicai-vos"; significa desenvolver o mundo social: formar famílias, igrejas, escolas, cidades, governos, leis. A segunda frase - "enchei a terra, e sujeitai-a"; significa subordinar o mundo natural: fazer colheitas, construir pontes, projetar computadores, compor músicas. Esta passagem é chamada de o mandato cultural, porque nos fala que nosso propósito original era criar culturas, construir civilizações; nada mais.
Isto significa que nossa vocação ou trabalho profissional não é uma atividade de segunda classe, algo que fazemos para pôr comida na mesa. É a grande obra para a qual fomos criados. O modo como servimos ao Deus Criador pode ser demonstrado ao utilizarmos, com criatividade, os talentos e dons que Ele nos deu. Poderíamos dizer que somos chamados a continuar a obra criativa de Deus. Claro que não criamos do nada, “exttihilo” (do nada), como Deus fez; nosso trabalho é desenvolver a capacidade e potencial que Ele construiu na criação, usando madeira para edificar casas, algodão para fazer roupas ou silício para fazer chips de computador. Embora as modernas instituições sociais e econômicas não se refiram explicita¬mente ao jardim do Éden, sua justificação bíblica está fundamentada no mandato cultural.
Nos primeiros seis dias da narrativa de Gênesis, Deus forma e enche o universo físico: o céu com o sol e a lua, o mar com as criaturas natatórias, a terra com os animais terráqueos. Então, a narrativa faz uma pausa, como a enfatizar que o próximo passo será a culminação de tudo que fora criado. Esta é a única fase no processo criativo em que Deus anuncia com antecedência seu plano, quando os membros da Trindade consultam entre si: "Vamos fazer uma criatura 'à nossa imagem' que nos represente e continue nosso trabalho na terra" (cf. Gn 1.26). Em seguida, Deus cria o primeiro casal humano para ter domínio sobre a terra e governá-la em seu nome.
O texto deixa claro que os seres humanos não são governantes supre¬mos, livres para fazer tudo que desejarem. Seu domínio é uma autoridade delegada — eles são representantes do Governador Supremo, chamados para refletir seu cuidado santo e amoroso para com a criação. Eles têm de "cultivar" (palavra que tem o mesmo radical que "cultura") a terra (Gn 2.15, ARA). O modo como expressamos a imagem de Deus pode ser demonstrado pela nossa criatividade e maneira de construir culturas.
Este era o propósito de Deus quando criou o ser humano, e até hoje continua sendo seu propósito para nós. O plano original de Deus não foi cancelado pela queda. O pecado corrompeu cada aspecto da natureza humana, mas não nos fez menos que humanos. Não somos animais. Ainda refletimos "por espelho" (1 Co 13.12),"obscuramente" (ARA), nossa na¬tureza original como portadores da imagem de Deus. Até os não-cristãos executam o mandato cultural — eles "se multiplicam e enchem a terra", ou seja, casam-se, constituem famílias, abrem escolas, dirigem negócios. E também "cultivam a terra" — consertam carros, escrevem livros, estudam a natureza, inventam novos dispositivos.
Após uma conferência que dei, certa jovem me disse: "Quando você fala sobre o mandato cultural, não diz nada categoricamente cristão; essas são coisas que todo o mundo faz".
Mas é isso mesmo que quero dizer: Gênesis nos fala de nossa verdadei¬ra natureza, das coisas que não podemos deixar de fazer, do modo como Deus criou cada ser humano com um fim específico. Nosso propósito é precisamente cumprir nossa natureza dada por Deus.
A queda não destruiu nosso chamado original, porém o tornou mais difícil. Nosso trabalho é marcado por tristeza e labores. Em Gênesis 3.16,17, o original hebraico usa a mesma palavra para referir-se à "dor" do parto e à "dor" de cultivar alimentos. O texto dá a entender que as duas tarefas centrais da maioridade — criar a próxima geração e ganhar a vida — estarão repletas da dor de viver em um mundo caído e despedaçado. Todos os nossos esforços serão distorcidos e mal orientados pelo pecado e egoísmo.
Quando Deus nos redime, Ele nos liberta da culpa e do poder do pecado, e restaura nossa plena humanidade, de forma que possamos cum¬prir as tarefas para as quais fomos criados. Por causa da redenção de Cristo na cruz, nosso trabalho assume um novo aspecto, pois torna-se um meio de participar dos seus propósitos redentores. Ao cultivarmos a criação, recuperamos nosso propósito original e trazemos uma força redentora para anular o mal e a corrupção que entraram pela queda. Oferecemos nossos dons a Deus para tomarmos parte em fazer com que seu Reino venha e sua vontade seja feita. Com coração e mente renovados, nosso trabalho pode ser inspirado pelo amor a Deus e deleite em seu serviço.
A lição do mandato cultural é que nosso senso de cumprimento de¬pende de nos dedicarmos ao trabalho criativo e construtivo. A existência humana ideal não é lazer eterno ou férias infinitas — ou um recolhimen¬to monástico em oração e meditação —, porém esforço criativo gasto para a glória de Deus e benefício dos outros. Nosso chamado não é so¬mente "ganhar o céu", mas também cultivar a terra; não só "salvar almas", mas servir a Deus pelo trabalho que fazemos. Pois o próprio Deus está comprometido no trabalho de salvação (graça especial) e no trabalho de conservação e desenvolvimento de sua criação (graça comum). Quando obedecermos ao mandato cultural, participaremos do trabalho do pró¬prio Deus, como agentes da sua graça comum.
Este é o rico conteúdo que deve vir à nossa mente quando ouvirmos a palavra redenção. O termo não se refere ao episódio de conversão ocorrido em determinado tempo. Significa alistar-se no empenho vitalício de dedicar nossas habilidades e talentos à construção de coisas que sejam bonitas e úteis, ao mesmo tempo em que combatemos as forças do mal e do pecado que oprimem e distorcem a criação. O livro "E Agora, Como Viveremos?" acrescenta uma quarta categoria: criação, queda, redenção e restauração, para enfatizar o tema da vocação contínua. Certos teólogos sugerem que a quarta categoria deveria ser glorificação, pois assim atentaríamos para nossa meta final de morar nos novos céus e na nova terra, para a qual nosso trabalho aqui é uma preparação.
Qualquer que seja o termo que usemos, ser cristão significa embarcar em um processo vitalício de crescimento na graça em nossa vida pessoal (santificação) e em nossa vocação (renovação cultural). Os novos céus e a nova terra serão a continuidade da criação que hoje conhecemos — purificados pelo fogo, mas re-conhecidamente os mesmos, assim como Jesus era reconhecível no corpo da sua ressurreição. Como C. S. Lewis diz, em sua obra As Crônicas de Nárnia, começamos uma grande história de aventura que nunca termina¬rá.Trata-se da "Grande História que ninguém na terra leu —que continua para sempre — na qual todo capítulo é melhor que o anterior"."'
Nancy Pierce
retirado do Livro: Verdade Absoluta CPAD)
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